Entrevista com Wellington Monteclaro
por Emiliana Carvalho

E.C.– O que o instigou a criar uma peça sobre a canção Faroeste Caboclo de Renato Russo?
Monteclaro – Sou arte-educador há muitos anos e numa sessão de oficina de teatro na escola propus aos meus alunos que adaptassem o poema homônimo de Renato Russo. Era um exercício com a literatura dramática. Eles deveriam descobrir como se construía na prática um texto para teatro. Eles assim o fizeram. Tentamos por vários anos montá-lo em forma de teatro, mas havia algo muito distante da realidade dos meus alunos com o conteúdo da canção. Parece que aqueles estudantes que estranhavam a temática do "Faroeste". O enredo era difícil de ser vivido por eles enquanto alunos-atores. Também nada naquele enredo de violência e morte identificava-se com eles: meninos de boa condição financeira, brancos e com nenhuma vivência com as margens da vida. Um dia, depois de reativar meu grupo de teatro, a Trupizupi Mídias CIA que há anos andava parado e inativo juntei um bando de 25 ou 30 atores jovens e amadores e propus a montagem de "Faroeste Caboclo”. Fizemos uma série de exercícios preparatórios, pois eu já sabia a concepção que eu queria dar a esse trabalho. Começamos um rigoroso treinamento (não acredito em teatro sem treinamento) pra que tudo culminasse na peça, sem tempo previsto pra apresentar.Podíamos demorar 5,6,8 meses mas eu não tinha nenhuma previsão...
Como o teatro,sobretudo o amador,é uma faca de dois gumes,uma atividade onde as pessoas hoje estão imbuídas nela,amanhã sairão por estarem em outras,eu fui sendo acordado do meu sonho.Quem foi que me disse que eu poderia montar um espetáculo com esse elenco todo?A ideia inicial era maravilhosa e ficou guardada para sempre em mim:o palco cheio,as massas de corpos formando ornamentos no espaço,os níveis que eu poderia fazer em cada cena com levantamentos mágicos de atores,as distribuições,a estética...Fui acordado do meu sonho. Um cruel funil se estabeleceu e por ele foram escoando todos os duvidosos, os preguiçosos, os pretensiosos, os imediatistas.O elenco foi ficando vazio e me restaram 5 atores.Dos 5 saíram 2.E o desespero de ter que parar um processo de meses! Conseguimos fechar um grupo de 4 atores e um estalo criativo me fez reescrever a peça para ser apresentada por 4 pessoas,mas sabe em que condições? Cada um dos atores teria que fazer 4,5 ou 6 papéis cada um.Foi um susto quando apresentei a nova proposta,mas fizemos.E está aí a peça pra quem quiser ver e apreciar o espetacular trabalho artístico do grupo.

E.C.– O que diferencia sua representação cênica do texto da música Faroeste Caboclo?
Monteclaro – As diferenças estão na proposta. Desde a literária - quando o texto sofre uma metamorfose,indo do poema para dramaturgia - até a teatral que não obedece a preceitos. A arte cênica é radicalmente livre. Ela interpreta, relê, refaz - até porque isso é o teatro: essa possibilidade de tornar visível o que a literatura apenas torna imaginado. No teatro se faz ver o imaginário e aí está a magia dessa arte tão mediocrizada através dos tempos e ,sobretudo, a partir do legado do Realismo, um movimento sobrevivente das Vanguardas, que prega a imitação fiel da realidade.
"Faroeste" é a mesma história contada com outro corpo, outra roupa, outras cores, outro cenário. Eu faço uma concepção visual inusitada, com figurinos e acessórios que vêm dos rituais africanos e indígenas, máscaras e uma interpretação que causa estranhamento pois não condiz muito com o cotidiano,aliás,é extra-cotidiana e vem de estudos e experimentos com o teatro oriental. Suas posturas e gestuais munidos de forças, com o teatro físico, com a biomecânica (de Meyrhold) e o Teatro Antropológico (de Eugênio Barba). Mas nada é uma imitação ou reprodução do que eles fazem. Não, não é. Originalidade total é lema para Trupizupi. Apenas trabalhamos essas diversas técnicas e aplicamos os princípios delas no nosso trabalho.



E.C. – Há uma mensagem por trás do espetáculo?
Monteclaro – Podíamos estar preocupados com isso,mas não é bem isso a função da arte. Melhor: não é só isso. Passar mensagem, comunicar alguma coisa torna-se um detalhe em meio ao mundo de coisas que a imagem, enquanto estética, pode oferecer. Mas eu diria que a mensagem explícita no nosso espetáculo - não no poema de Renato Russo, mas no espetáculo – é que a loucura ronda a cabeça de um jovem como João de Santo Cristo. Ele está prestes a enlouquecer,vive num turbilhão de dúvidas,de desgostos,desespera-se frente ao mundo que ele mesmo criou,se pergunta se aquilo foi bom e vive seus últimos dias como se já esperasse a morte. Ela é imprescindível e ele já sabe que ela virá. Perdeu seu grande amor, Maria Lúcia, por preferir o erro e nada pode salvá-lo. O Diabo ronda sua vida, à espreita, e o empurra para novos desafios com o mal. Traz Jeremias e o coloca no caminho de João para deliciar-se com um duelo final, de sangue e mortes.
É isso... Uma mensagem nada animadora, mas que deixa o seguinte lembrete: quem se meter nessa "aventura" não terá volta. Esse faroeste é mortal! O jovem que vê o espetáculo entende a mensagem final e com certeza sai do teatro chocado, senão, no mínimo, impactado.

E.C. - Como se deu essa metalinguagem entre você e o filotógrafo (filósofo-fotógrafo) Marcos Cesário?
Monteclaro Conheci Marcos Cesário há algum tempo e tive o prazer de conhecê-lo melhor ao ler o livro "Iludidos". A parceria entre linguagens é impossível de não acontecer. Primeiro que o teatro por si só já é um integrador de linguagens. O teatro consegue misturar, fundir numa composição mágica todas as possíveis possibilidades comunicativas,não somente as verbais,mas sobretudo as não-verbais, aquilo que se expressa através das cores,dos sons,das formas,das texturas,dos movimentos,do corpo sem a presença da fala. O corpo é a instância simbólica mais forte do teatro. É no corpo do ator que as coisas se dão, que as emoções se manifestam, que as imagens se concretizam que se busca as inúmeras possibilidades de expressão, de pensamentos e ações. O corpo é o lugar do "como". Através dele o ator procura no abismo como dizer da melhor maneira o que se quer dizer. O corpo é a parte animal,domesticado socialmente,mas que,através do teatro,essa arte complexa da proposição e criatividade,da liberdade e da libertação se altera num caleidoscópio de formas possíveis, as mais variadas na busca pela expressão do que há de mais humano no ser humano.
Cesário, sendo o artista que é, atua no seu campo de forma livre e intuitiva, buscando a imagem que se encontra no seu imaginário. Quer alcançá-la, materializá-la, empedrá-la numa foto. Mas quer permitir que a foto continue seu movimento próprio do fato real, que a foto vibre, que dance e é por isso que nas duas experiências feitas com ele eu percebi a primazia da dança, do gesto, do movimento, até nos elementos do cenário: as nuvens dos fundos que se transformam em desenhos tridimensionais pesados ou leves;  o vento que move a roupa ou os cabelos; a terra, a copa das árvores...
Marcos Cesário pra mim é isso: o pintor que utiliza a máquina fotográfica como pincéis e pinta querendo dizer seus poemas quando está fotografando. A parceria aconteceu. Após assistir "Faroeste Caboclo" ele nos convidou para realizarmos esse ensaio fotográfico. Achamos interessante e topamos. Qualquer experiência que venha nos acrescentar como artistas é de extrema importância pra nós.

E.C. – Você preza muito, em seus espetáculos, a originalidade dos figurinos ...
Monteclaro – Nesta peça, o figurino aparece como um abrasileiramento, uma nacionalização do faroeste. É a minha influência modernista, movimento que me é fonte inesgotável, da qual faço característica de minha arte. Meus figurinos dizem muito de brasis, brasis do caboclo, do sertanejo, do vaqueiro do sertão, dos orixás, dos santos, dos rituais, das festas populares, dos reisados e mascaradas. É isso que eu digo pelo figurino: é a minha interpretação cabocla da música. E isso que está em todo o meu trabalho. Você vai assistir outras montagens, minhas performances e você vai ver sempre, sempre esse quêzinho desse Brasil do folclore riquíssimo de imagens, belo, belo no popular, no que vem do povo, sua música, seu requebro, seus folguedos.